CAMPO GRANDE
Em “A arte da mentira”, o professor canadense de Semiótica e Antropologia Linguística da Universidade de Toronto, Marcel Danesi, diz que as mentiras contadas pelos altos escalões de qualquer governo levam, invariavelmente, ao desmoronamento dos princípios de verdade e de justiça que sustentam uma sociedade democrática.
Ironicamente, Marquinhos Trad (PSD) renunciou ao cargo de prefeito de Campo Grande em 1º de abril, o Dia da Mentira. De lá para cá, a Capital e o Estado veem o ex-prefeito se vangloriar por ter deixado, supostamente, R$ 300 milhões em caixa.
Diante disso, surgiu na cidade uma corrida por esses milhões, como se fossem tesouro perdido. Até porque a administração precisa de dinheiro para resolver problemas crônicos: concluir obras intermináveis e melhorar as condições de atendimento das unidades de saúde.
Há ainda ações que o ex-prefeito deixou de fazer em mais de cinco anos no cargo: atender minimamente a periferia com obras emergenciais para recuperar estragos causados pela chuva, buracos novos e antigos, e mais adiante para amenizar os efeitos das tempestades de poeira.
Estado e Capital veem ex-prefeito se vangloriar por deixado dinheiro em caixa, que ninguém sabe onde está
Adriane Lopes (Patriota) — cujas atividades do dia a dia se assemelham mais com as de secretária de Assistência Social do que as de prefeita — não precisa de lógica e metodologia brilhante de investigação para apontar onde está o dinheiro.
Se os recursos existem, Adriane tem obrigação de retomar as cerca de 40 obras paralisadas, segundo levantamento preliminar do MS em Brasília, sob pena de ser coautora de possível mentira espalhada por Trad para promover sua pré-candidatura a governador.
Dados do Tesouro Nacional revelam, no entanto, ser impossível que o município tenha R$ 300 milhões. Haveria uma única explicação para que esse valor esteja disponível: que o ex-prefeito, nos três meses de gestão em 2022, tenha deixado de pagar despesas obrigatórias, como o salário do funcionalismo e o custeio da máquina. O dinheiro, reitere-se, é contadinho.
Principal indicador para medir a situação econômica de uma gestão, a Poupança Corrente revela que a relação despesa corrente/receita corrente ajustada, de Campo Grande, está em 97,75% — a dois pontos percentuais e 26 décimos de gastar mais do que arrecada, o segundo pior resultado entre as 26 capitais.
“Quanto menor o indicador, melhor. Maior a capacidade da receita corrente de financiar investimentos, ou amortizar a dívida, além da própria despesa corrente, inclusive juros. A poupança corrente é o principal indicador central da institucionalidade fiscal do país”, diz trecho de nota do Tesouro Nacional.
Como se observa, Campo Grande não tem as mínimas condições de fazer investimento com recursos próprios. É matemática pura. A dúvida se mantém: de onde brotaram R$ 300 milhões? Na prática, é uma grande e descarada mentira.
Marquinhos Trad tem-se esmerado na arte da dissimulação. Faz promessas inexequíveis, como ocorreu em 2016, quando garantiu que os ônibus de Campo Grande teriam ar condicionado. Prometeu ainda, enfaticamente, que revisaria o contrato de concessão do transporte coletivo, assinado na gestão do seu irmão Nelsinho Trad (PSD). Além de não cumprir ambas as promessas, caiu no colo dos empresários de ônibus.
Marquinhos Trad tem-se esmerado na arte da dissimulação, fazendo promessas mirabolantes, inexequíveis
A trajetória do irmão do meio dos Trad é nebulosa, assim como a do mais velho, o senador Nelsinho, acossado por dezenas de processos por improbidade administrativa. O “irmão sanduíche” se diz ficha limpa, mas carrega nas costas fantasma de si mesmo: seu passado de estudante e de servidor comissionado.
Em 1986, quando fazia Direito no Rio de Janeiro, Marquinhos era – acredite — funcionário da Assembleia Legislativa em Mato Grosso do Sul, lotado no gabinete do pai, o então deputado estadual Nelson Trad. Recebeu polpudos salários durante o período em que estudava a 1.400 quilômetros de Campo Grande, onde deveria estar trabalhando, com jornada de oito horas diárias.
Ex-prefeito virou servidor efetivo da Assembleia Legislativa, sem concurso público, em 1988
Mais do que privilégio, a ilegalidade machuca a alma do sul-mato-grossense que se mata de tanto trabalhar para chegar ao final do mês e receber salário que não custeia nem 30% das suas necessidades fundamentais. Como fosse pouco ganhar sem trabalhar, Marquinhos virou servidor efetivo da Assembleia Legislativa, sem concurso público, em 1988.
Como se diz é “eita em cima de eita” para quem se julga acima de qualquer suspeita.
Ficha limpa tem sentido maior do que meras anotações nos registros da Justiça. Marquinhos Trad não é trigo limpo. Que tenha cuidado com seu próprio telhado e o do irmão quando quiser se apresentar como “diferente”, ou açoitar adversários. A esperteza, quando é muita, vira bicho e come o dono.